quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Ex Combatentes . Após 35 anos. Haja honra e não esquecimento

Regresso dos antigos combatentes


A casa da vergonha



São antigos combatentes da Guerra Colonial. Regressaram dos campos de batalha em África mutilados no corpo e na alma. Vivem em situação degradante no Lar Militar da Cruz Vermelha.



A porta de vidro é opaca. Finge estar fechada. Abrimo-la com a mesma facilidade como se estivesse descaradamente aberta. Entramos no Lar Militar da Cruz Vermelha, sediado na Avenida Rainha Dona Amélia, fundado, garante a placa, em 1971. Na recepção, um indivíduo interrompe uma côdea com manteiga para nos atender. Pede-nos o Bilhete de Identidade. Promove-nos a “doutores”. Preferimos os nomes a títulos. Ele gargalha.



O resto do mini-lanche apressa-se no estômago para mostrar lucidez: chama-se Manuel. É angolano. Por sorte, vive. Sorte. Coisa rara em Angola. O barco onde seguia afundou-se. O mar engoliu todos os ocupantes, “menos eu. Menos eu.” Duas vezes para ter a certeza que ainda permanece no reino dos vivos. A guerra não lhe roubou os braços, não lhe amputou as pernas. Corre e abraça. Mas, a contenda, esse choque de sangues, matou-lhe o que não nos quer dizer.



“Já vivi neste lar.” Alivia a lembrança. Quando a sua estadia expirou o prazo, teve que mudar de poiso.



Enquanto traz de volta as balas e os tiros que ouviu e viu em África, as cadeiras de rodas parecem presenças divinas; estão em todos os lados. São guiadas por homens de semblantes iguais. Rostos desmaiados. Com dores e segredos que, à partida, serão idênticos, ou com o mesmo fio doloroso. Seguimos o estrupido do comando das rodas. Manuel faz as honras da casa: enuncia as alcunhas dos deficientes. Num ápice faz o historial da tragédia física de cada um. Seguidamente, fala da sua. Mas não pode adiantar mais. “É confidencial. Eu também fui militar.”



A luz não consegue furar o espaço. Estamos num corredor cinzento. Um corredor com vivos mortos. Passamos por portas com maçanetas irregulares. Portas fechadas. Outras, nem por isso. Vemos: quartos. Cabem três camas. Têm televisões desligadas. Fotografias tão antigas que rejeitam a moldura. O silêncio deixa cair sempre um sonido, menos no Lar Militar da Cruz Vermelha. Ninguém abre a traqueia. Ninguém geme. Aqui, neste beco do mundo, ninguém tem nome. Pode-se entrar e sair sem ninguém dar por isso. Sem que ninguém se importe com isso.



O Governo que pretende proibir a nicotina nos restaurantes e nas discotecas, nesta residência não terá hipótese. Cigarros. Fumo. É névoa assídua.



No refeitório, no canto de uma prateleira de madeira, jazem garrafas e garrafões de vinho, vazios ou por abrir. Um cão de cor indefinida pastoreia na sala. Não ladra. Uma maca encaixou bem de frente ao televisor. Um militar, provavelmente o mais jovem dos internados, estava a servir Portugal numa comissão da ONU e um acidente de carro laminou-lhe os sentidos. Entretém o tédio com o vai-e-vem do ecrã.



São cinco da tarde. A mesa para o jantar está pronta. Pão num saco de plástico. Jarros brancos tapados com guardanapos lívidos. Destapamo-los. Lá dentro vive vinho, “Briol tinto que é o mais eficaz para suportar a noite”, afiança quem se recusa a revelar identidade. “A comida da janta é peru.” Mas tanto lhe faz a ementa de hoje e de há trinta anos.



Os braços e as pernas pararam antes dessa aritmética. A medula quebrou em África. A culpa não foi da pólvora. As minas não foram as culpadas. “Só pelo que vi fiquei assim.” “Só” são os horrores que presenciou e que lhe desencadearam ataques epilépticos. “Mas não quero falar disso.” A sua voz prende-se. Da garganta quer sair um choro. Ele não permite. Acciona a primeira mudança. A cadeira arranca e fica como todas as que resistem na sala: virada para a janela num doloroso abandono.



Alguém faz sinal com os olhos. Cumprimos a discrição. Vamos até à ponta do salão. Um saco a transbordar de totolotos e Euromilhões preenchem a mesa. Saiu ileso do combate em África. É reformado bancário. A reforma de mil euros vai absoluta para o lar. Adormeceu ao volante e o corpo não aguentou o embate. “Bebe-se muito. Aqui bebe-se muito!” Para esquecer ou para aguentar o arco do ponteiro do relógio. Para o que seja, a bebida faz a vez dos analgésicos e alivia os socos do tempo velho.



“Um dia eu contarei tudo o que se passa cá dentro.” Um dia que podia ser já. Mas, chegámos fora de horas. “Um dia. Hoje não.”



Manuel largou o seu posto e aparece à nossa beira. “Vão ao quarto n.º 5. Falem com o Bento.” Não nos esquecemos: confidencial. E agradecemos a confiança.



Os corredores, afinal, também são labirintos de escuridão. E para agravar o mapa, a numeração dos compartimentos é aleatória. Enquanto procuramos uma bendita porta que tenha o número cinco cravado na ombreira, deparamo-nos com a casa de banho. Aberta. Às claras. Uma criatura tenta a custo fazer um gesto simples. Em vão. O corpo não obedece. Ajudar é algo urgente. A cadeira com rodas milagrosas diz-nos que não: vira-nos as costas.



Aceleramos o passo. O cão fugiu do corredor. Continua sem latir. Talvez tenha pressentido qualquer coisa. Temos vergonha de poder fazer essas coisas simples. Temos vergonha deste cemitério doído. Fazemos a curva coxos de humanidade. A vergonha não arreda pé.



Até que enfim que, nesta mansão derrelicta, esbarramos com um empregado. Vem de cigarro pendurado nos dedos.



À parte da senhora que cuidava do prematuro jantar, os empregados, médicos, enfermeiros, são invisíveis. Devem ter hibernado. Daí a surpresa. A pronúncia do Leste sai seca. Bolça ordens: temos que esperar para ir ao referido quarto cinco. É o que fazemos. Depois, quando a impaciência se torna atrevida, batemos à porta. “Façam o favor de entrar.” É o Bento. Uma mulata de bata branca leva--lhe a sopa à boca.



Brincamos com o privilégio: tem uma miss só para ele. O riso traz-lhe saudades e orgulho. “Estou aqui, já faz uns pares de anos.” Combateu em Angola, “faz outros pares de anos.” O tempo, a duração de quando e como foi, quem estava e não estava, não fazem falta para uma conversa.



Na sua dianteira, um espelho emite o presente. Debaixo dos lençóis, repousa inquieto um físico autista. Combatente em Angola. Entre 1965 e 1968. Uma garrafa enxuta de Porta da Ravessa faz de bibelô. “Fui soldado em Angola. Mas não quero falar disso.” Angola é a palavra de ordem. Uma fotografia pendurada na parede ilustra os anos em que podia conduzir o carro mágico: cadeira de rodas. Se gosta, ou não, de estar internado no Lar, em nada lhe altera a rota. Aqui está e aqui ficará. A memória não traz saúde.



Encaminhamo-nos para a saída. Tropeçamos com o gelo da casa de banho. A impossibilidade humana não sofreu mutação. Um homem de laringe muda, vê-nos e desiste. O fragor agudo do motor manda mais do que tudo. Os empregados terão ido mesmo de férias. Um negro de cabelo grisalho não se separa da proximidade. As pernas voaram, mas os músculos dos braços rodam o assento.



Manuel está no seu posto – a entrada. Olha afincadamente para um frasco de perfume. Não sabemos a razão, nem ele. Mas sem querer, aquele odor anestesiou o bafo de solidão e de esquecimento que trazíamos do interior. “É confidencial.” Nem tudo. Como as três folhas onde estão inscritos vinte e um doentes. O vocábulo tetraplégico ganha em incondicional maioria.



As promessas cumprem-se. Voltámos num domingo. Dia da folga de Manuel – fraca pontaria. Este porteiro pertenceu à Polícia. O ritual não sofre alterações. O Bilhete de Identidade é o passaporte. Já fintámos o labirinto. No corredor esvaziado de luz, as caras reconhecem-nos. Os homens sem asas dão as boas-vindas: não viram as cadeiras de rodas. A mãe do militar que viu a sua coluna esmigalhada numa missão na ONU, dá de fumar ao filho.



O futebol expele os dois ‘tês’: o da timidez e o da tristeza. O cão teima em não ganir. O álcool nos copos escondidos e nas veias fazem a rotina. Milagrosamente, a dicção ucraniana amoleceu. Abraça-nos com um cotovelo.



Decorámos o exílio de Bento, esse quarto com o algarismo cinco que tem um espelho a reflectir o calendário. O Bento é o único que não rasgou o diário. Hoje, o passado, apesar de continuar em carne viva, larga mais eco. Em 1968, quando estava pronto para regressar ao seu Algarve, uma bala atingiu-lhe a liberdade motora. No dia 7 de Março a vida estremeceu. De Angola veio para Portugal numa maca. Veio metade. “É assim.” Cortamos a mágoa. Distraímos a mácula com a ausência da Porta da Ravessa. “Nem todos os dias são dias. Mas gosto. Temos que fazer alguma coisa.” Indagamos se é costume receberem visitas de representantes do Estado português ou de dirigentes da Cruz Vermelha. O sim sai-lhe a saca-rolhas. “Não me ponha em barulhos.”



No caminho para a fronteira da humanidade – o acesso para sair do Lar Militar da Cruz Vermelha – lá estava a casa de banho abandonada com gente abandonada a viver num depósito. Os nossos pés pesam e aceleram. Ainda na saída, cruzamo-nos com o amante dos jogos de sorte. Ganhou nove euros. A família foi para a terra.



Ele ficou ali. Insiste no que anteriormente nos disse: “Um dia eu conto tudo o que se passa nesta casa. Ainda não é hoje. Repare nestas paredes. Estão imundas. Não temos ninguém.” Do seu bolso caem duas amêndoas. São nossas. Deixamos a porta aberta.

ESTE RESUMO ACERCA DO LAR MILITAR DA CRUZ VERMELHA  É APENAS UM DOS LADOS SOMBRIOS DOS RESISTENTES QUE TEIMAM EM (SOBRE)VIVER...